segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Homilia da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (Paróquias de Luso e Pampilhosa)

SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS
1 DE JANEIRO DE 2012

Introdução
Este primeiro dia do ano, celebração da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, que encerra a oitava de Natal, é marcado por múltiplos elementos que enriquecem a nossa reflexão e celebração. Sendo o dia dedicado a Maria, permite-nos reconhecer a grandeza da sua maternidade – Daquela que tudo meditava em seu coração (cf. Lc. 2, 19) -, colocando-nos, igualmente, ao iniciar-se um novo ciclo anual, sob a sua protecção maternal; enquanto, por outro lado, ainda, nos apresenta o seu modelo de fidelidade à missão que Deus lhe confia, ao constitui-La Mãe do Seu Filho feito carne no meio de nós. Maria, que nos dá Cristo, pela Sua intercessão, favorece o nosso contacto com o mesmo Cristo (cf. LG. 60), a quem agora nos conduz, na ordem da graça.
Mas este dia - primeiro do ano - é também dedicado à paz, segundo a vontade do Papa Paulo VI, que, em 1968, instituiu o Dia Mundial da Paz, «como augúrio de um novo ano e de uma nova era de paz». Na celebração do seu quadragésimo quinto dia, o Papa Bento XVI propõe-nos, como mensagem, o tema: Educar os Jovens para a Justiça e a Paz; reflexão que merece a nossa atenção cuidada e disponível, para que, celebrando Cristo «Príncipe da Paz», renovemos os nossos laços de autêntica comunhão fraterna, olhando especialmente, neste ano, para a formação das novas gerações.
Precisamente por estarmos situados no primeiro dia do ano, a Igreja, na senda dos sacerdotes da Antiga Aliança, convida-nos ainda a invocar a bênção de Deus sobre o Seu povo, agora constituído como novo Israel que vive «aquela aliança nova e perfeita que haveria de selar-se em Cristo, e da revelação mais plena que o próprio Verbo de Deus, feito carne, viria comunicar» (LG. 9).
O sentido profundo da bênção e a mensagem para o Dia Mundial da Paz – da paz que não é apenas «ausência de guerra», mas que pressupõe uma verdadeira disposição interior para viver a dignidade da pessoa humana, a livre comunicação entre pessoas e a salvaguarda dos seus bens (cf. CIC. 2304; MDMP. 5) – merecerão a nossa breve atenção nas linhas que a seguir se propõem.
1. Abênção na Sagrada Escritura
De entre as múltiplas expressões de bênção, que encontramos na Sagrada Escritura, sobressai para nós, hoje, a do Livro dos Números (1ª Leitura) recitada pelos sacerdotes sobre todo o Povo de Israel: «O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilharsobre ti a sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz» (Num. 6, 24 – 26). Esta bênção, cujo texto se constituiu como fórmula oficial para abençoar o povo, em qualquer ocasião em que a assembleia do Israel antigo se reunia, era proclamada pelos sacerdotes, ainda que, na sua forma originária, fosse proclamada pelo rei, a quem competia exercer funções sacerdotais e que abençoava em nome de Deus. Na verdade, é sempre Deus quem abençoa o Seu povo, particularmente quando este se reúne para um encontro consigo. Sendo uma assembleia litúrgica, Deus é colocado nominalmente no meio do Seu povo, a quem dispensa as Suas graças. É o próprio nome de Deus, proclamado sobre o povo, que se torna a fonte de todas as bênçãos e não qualquer outra consideração de carácter ritual ou mágico, pois Deus é que é a fonte de todos os bens. Estar na presença de Deus é fonte de bênção, enquanto a Sua ausência é fonte de privação desse dom.
Ora, para nós cristãos – que temos a graça de nos unir a Cristo intimamente, pois pelo Baptismo estamos configurados com Ele, formando o seu corpo místico (LG. 7) - esta bênção adquire um sentido ainda mais profundo: a verdadeira bênção é a participação da própria vida de Deus, que Ele, na Sua bondade, nos comunica no Seu Filho feito carne no meio de nós. Ou seja, a nossa verdadeira bênção é Cristo, garantia da plenitude da vida, pois n’Ele o Pai nos predestinou «para
sermos Seus filhos adoptivos, conforme o beneplácito da Sua vontade» (cf. Ef. 1, 5). Na sequência do Livro dos Números, a nossa protecção torna-se o próprio Cristo, cuja face nos é favorável e que se constitui para nós a fonte de toda a paz. Por isso o papa interpela a todos, e especialmente aos jovens, a compreender que «não são as ideologias que salvam o mundo, mas unicamente o voltar-se para o Deus vivo, que é nosso criador, o garante da nossa liberdade, o garante do que é deveras bom e verdadeiro, que é a medida do que é justo e, ao mesmo tempo, é o amor eterno» (MDMP. 6). Esta verdade e esta vida contemplamo-la todos nós em Cristo, «o caminho, a verdade e a vida» (Jo. 14, 6), Aquele – o único – por Quem chegaremos ao Pai (cf. Jo. 14, 6).

2. O tempo presente
No tempo presente, muitas são as propostas de realização e felicidade que nos chegam de diversos quadrantes. Mas muito poucas comportam consistência e essencialmente nos conduzem à plenitude da vida que buscamos. Os jovens, como todos nós, imersos nesta sociedade que cultiva o relativismo, «nada reconhecendo como definitivo», mas deixando somente como «última medida o próprio eu com os seus desejos», o que nos fecha em nós próprios, separando-nos «uns dos outros» (cf. MDMP. 3), são também as maiores vítimas desta sociedade que lhes nega – como bem refere o papa – «o desejo de receber uma formação que os prepare de maneira mais profunda para enfrentar a realidade, a dificuldade de formar uma família e encontrar um emprego estável, a capacidade efectiva de intervir no mundo da política, da cultura e da economia, contribuindo para a construção de uma sociedade de rosto mais humano e solidário» (MDMP. 1); o que, não raro, é fonte de desânimo ou mesmo de contestação – seja ela activa ou silenciosa.
Na verdade, vivemos um conjunto de «falências» na cultura moderna, que provêem já de um passado longínquo, cujas raízes se encontram no iluminismo do séc. XVIII. O ideal do homem sem Deus – que se afirmou em muitas ideologias do século XX; o ideal do sucesso económico e material sem fim, fruto de uma sociedade tecnocrata e consumista; e mesmo o ideal da contínua perfectibilidade do homem, cujas raízes provêem desses tempos mais longínquos da história; manifestam-se hoje como ideais falidos, sem capacidade de responder aos desafios concretos com que cada um se confronta, no concreto das suas vidas. Necessitamos, por isso, de regressar à verdade mais essencial sobre a nossa identidade humana: aquela consciência da «dignidade da pessoa», que leva cada um – na expressão do Vaticano II – a exigir «poder agir de acordo com os seus critérios no exercício de uma liberdade responsável, guiados apenas pela consciência do dever e não por qualquer coacção» (DH. 1), que se opõe a uma concepção de liberdade marcada pelo relativismo do eu absoluto, julgando-se independente de todos, podendo «fazer tudo o que lhe apetece», acabando «por contradizer a verdade do seu ser e perder a sua liberdade» (MDMP. 3). É que, de facto, sob a aparência de uma liberdade sem fim, o relativismo hodierno transformou-se na maior coação mental, social e cultural, que nos chega de formas diversas, e que esvazia o sentido profundo da vida humana.
Ora, os jovens de hoje – adultos de amanhã – necessitam de ser formados na verdade e na justiça, como refere o papa, de onde sobressai, como «primeira educação», «reconhecer no homem a imagem do Criador e, consequentemente, ter um profundo respeito por cada ser humano e ajudar os outros a realizarem a sua vida conforme a esta sublime dignidade» (MDMP. 3). Este é o desafio lançado a todos os que têm a tarefa de educar os mais jovens, significando educare «conduzir para fora de si mesmo ao encontro da realidade, rumo a uma plenitude que faz crescer a pessoa», tarefa esta confiada à família, às instituições educativas, aos responsáveis políticos, ou ainda aos meios de comunicação social, cuja acção é tão importante, pois que é estreita a relação entre «comunicação e educação» (cf. MDMP. 2).

3. A bênção que nos é oferecida
A maior bênção que nos é oferecida é a condição de filhos de Deus e irmãos uns dos outros, o que nos permite tomar consciência de nós mesmos, mas nunca de forma isolada. É o próprio Jesus, feito carne, quem nos revela, na Sua humanidade, o valor da vida humana e nos ensina a reconhecer o outro como nosso verdadeiro irmão, pois que Ele foi o primeiro a fazer-se próximo de cada um de nós. Assim, descobrir em Deus, feito carne, a liberdade autêntica (cf. MDMP. 3) é primeira condição para alcançar a verdadeira bênção - enquanto benefício ou graça mais sublime - de que não pode separar-se o serviço aos outros, pois que justiça e caridade, na concepção cristã, resultam desta «mesma identidade profunda do ser humano» (MDMP. 4). Como nos recorda ainda o papa «a justiça não é uma simples convenção humana, pois o que é justo determina-se originariamente não pela lei positiva, mas pela identidade profunda do ser humano. É a visão integral do homem que impede de cair numa concepção contratualista da justiça e permite abrir também para ela o horizonte da solidariedade e do amor» (MDMP. 4). A nossa felicidade, ao longo de um novo ano, resulta essencialmente desta consciência profunda de nós – que já não somos escravos, mas filhos, como refere a segunda leitura de hoje (cf. Gál. 4, 7) - e do serviço que prestamos aos demais. Isto é, depende do modo como acolhemos os dons de Deus e os transformamos em verdadeiros dons humanos, colocando-os ao nosso serviço, em verdadeira atitude de acção de graças, mas igualmente ao serviço uns dos outros.

Conclusão

No início de um novo ano, que o Senhor nos conceda a graça de reconhecermos a bênção que nos foi dada, pois que o Pai «nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais, nos céus» (Ef. 1, 3), predestinando-nos «para sermos seus filhos adoptivos por Jesus Cristo» (Ef. 1, 5) - o fundamento da nossa suprema glória; e nos faça reconhecer na caridade o «vínculo da perfeição» (Col. 3, 14), sabendo que, por ela, «passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos» (1Jo. 3, 14).
Que a Virgem Mãe, para quem olhamos e a quem nos confiamos neste primeiro dia do ano, vele por todos nós e nos conceda, pela graça da Sua intercessão, que o olhar de Deus repouse sobre nós, no seja favorável e nos conceda a paz. A ela, Mãe de todos os cristãos, recomendamos especialmente os nossos jovens, para que estes encontrem em Deus a fonte da vida; e numa verdadeira cultura da justiça e da paz, sejam os construtores de um mundo com um «rosto mais fraterno e humano», verdadeiramente digno da nossa condição de homens e de filhos de Deus.